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Ver fora de mim


Entrevista de Suzana Queiroga a Glória Ferreira
Rio de Janeiro, 26 de julho de 2007

GLÓRIA FERREIRA: Depois da exposição In Between, realizada nas Cavalariças do Parque Lage, sobre o qual a nossa conversa anterior tratou (ver depoimento de 5 de março de 2004, p.107–116), seu trabalho tendeu a uma expansão, uma pintura expandida, poderíamos dizer, com uma escala cada vez maior e o uso de novos meios. A idéia de expansão torna-se algo constitutivo do trabalho, como se a relação com o espaço, que, naquele momento, estava muito presente e intensa na sua reflexão, buscasse um outro ambiente: o do tecido urbano, do espaço público...


SUZANA QUEIROGA: De fato, em In Between, houve uma conversa muito intensa com o espaço. Foi quase um site especific, chegou a esse limite, com muita proximidade. Não o foi porque é um trabalho que pode ser reorganizado em outro local, suportaria outras organizações em outros espaços, sem perder sentido; ao menos na minha cabeça, não haveria problema. Mas surgiu com uma relação muito forte com o ambiente muito impregnado das Cavalariças. Dessa forma, teve uma relação intensa com um determinado espaço, o que matiza um pouco o próprio trabalho. A experiência da pintura? Ela teve conseqüências a partir daí: uma em relação à pintura propriamente dita — o que estou fazendo aqui no ateliê; e a outra, em relação à pintura à qual você se refere — uma pintura expandida. Acho que concordo com você. Aquela relação com a arquitetura, muito intensa naquele momento, não deixa de ser importante, óbvio, mas passa a ser compartilhada com um espaço mais amplo, e até com o próprio espaço urbano, com diferentes idéias para essas participações. Houve uma continuidade com trabalhos anteriores, particularmente dois trabalhos: os brancos e os infláveis. O salão branco das Cavalariças (Dobra, 2004, p.91–99) foi um trabalho de relação com a parede, de relação com a topologia da parede, que teve continuidade e desenvolvimento na exposição Topos, realizada na Funarte em 2007 (I Prêmio Nacional Projéteis de Arte Contemporânea, p.28–41). É o terceiro trabalho que faço nessa direção. Já nos infláveis, a experiência de imersão é muito pictórica, assim como a relação da arquitetura do corpo com a arquitetura construída do penetrável. O próprio tingimento que acontece pelo filtro de luz — o filtro plástico que imprime cor em quem está dentro do objeto — é uma questão de pintura forte tanto para quem vê de fora quanto para quem vê de dentro.


GF: Particularmente nos infláveis penetráveis, na sua exposição na Galeria 90 (Velatura, 2005, p.1–10), logo após as Cavalariças, você introduz, talvez pela primeira vez, a questão da participação do espectador. Embora, é claro, nas Cavalariças, já estivesse presente a relação corporal, até mesmo pelas dimensões daquelas pinturas.
SQ: Tem coisas muito importantes que fizeram esse inflável acontecer: a experiência dos infláveis anteriores, que não são penetráveis, mas vazados e quase planares, como grandes colchões de ar transparentes, com orifícios, através dos quais você vê o que há do outro lado. Logo depois de construir esses infláveis, em 2002, quando os vi pela primeira vez prontos, pendurados, percebi, através das transparências, a estrutura tridimensional dos orifícios das construções. Esses primeiros infláveis, Tropeços em Paradoxos — AR (p.12–13, 14, 20), foram criados no âmbito da série Tropeços em Paradoxos, de 2002 (p.118–129), pensando mais numa situação frontal de pintura — são madeiras recortadas com encáustica líquida jogada sobre uma superfície, da qual é retirada uma série de orifícios, círculos, e esses círculos permitem a visão da parede que está atrás. Tornam-se círculos brancos. Os primeiros infláveis foram muito relacionados a esse trabalho. Em Tropeços em Paradoxos — AR, o cilindro que estrutura o orifício, quer dizer, que sai de um topo para o outro lado, forma uma coluna interna. Esse espaço arquitetônico criado ali dentro me surpreendeu. Quis, então, fazer um outro trabalho
que fosse essa mesma história da pintura, em que eu pudesse ingressar e ser, de certa maneira, contaminada
pelo próprio ambiente da pintura. Essa história ficou na minha cabeça em 2002, quando construí os primeiros
infláveis. Apresentei-os, durante uma semana, em 2004, em frente às Cavalariças (exatamente quando acontecia a exposição In Between). Confirmou-se, então, o desejo de construir um inflável penetrável que dialogasse com a escala arquitetônica, com a escala humana e com o corpo. Construir uma relação do corpo com a pintura, por meio de uma espécie de espaço arquitetônico que transformasse o próprio espaço arquitetônico onde ele estava inserido — a instalação Velatura ocultou a própria galeria — e que pudesse promover o ingresso no próprio trabalho, possibilitando a visão de dentro de um meio líquido, de uma tinta transparente a impregnar nossa pele e modificar nossa percepção do próprio espaço, do próprio corpo; em relação ao caminhar também, à circulação entre as colunas naquele meio. Pensei num espelhamento: em uma das paredes, na maior, havia um espelho do teto ao chão, de modo que, quando alguém ingressava, também se via ingressando, distorcido, velado, borrado, manchado e avermelhado dentro de um espaço duplicado, e que não era mais um espaço real, porque estava, curiosamente, fora de foco. Todo o espelhamento ficava fora de foco por causa do material. O título Velatura refere-se à técnica de pintura que remonta ao Renascimento, de superposição de películas transparentes de tinta a óleo, que modificam a cor da pintura sem impossibilitar a visão dos seus elementos.
Em Velatura, a expansão da pintura altera a nossa percepção espaciotemporal, de modo a proporcionar a experiência de estarmos imersos numa grande pintura.
O material transparente provoca a percepção de inúmeras gamas, tons e semitons de vermelhos, de forma cambiante,em quem ingressa e em quem o observa de fora. O deslocamento entre as colunas é a experiência de uma arquitetura (o corpo) dentro de outra. Em seu interior, os nossos corpos tornam-se avermelhados, pois são banhados pela luz filtrada que nos transforma em novos elementos do trabalho. Para mim, Velatura = pintura /arquitetura / organismo /cor vermelha.
E, é claro, pensei muito em Hélio Oiticica. Pensei muito porque vejo todos os seus penetráveis como uma experiência forte de pintura.


GF: Ou pelo menos com uma presença da pintura muito forte...


SQ: Presença muito bonita, muito importante em toda a experiência. É uma experiência em que a cor se imprime no próprio local. Essa presença é muito forte, uma das coisas mais incríveis...


GF: Você se referiu, em outro contexto, a um diálogo do seu trabalho com a pintura anterior ao Renascimento, anterior ao momento da grade perspectiva, desencadeado pelo impacto que uma visita ao Museu de Cluny, em Paris, lhe causou. Você relaciona os elementos da Topologia, com a qual você trabalha hoje, e que estão muito presentes na Velatura, por exemplo, e o espaço da pintura medieval...
Refiro-me, em particular, à sua conceituação sobre o Topos.


SQ: Vejo uma estreita relação entre a experiência do Topos, um trabalho de parede, com a dos infláveis — ambos estão relacionados à Topologia. Segundo o que percebo, na relação entre a arte e a arquitetura pré-renascentistas, parece-me que há uma integração, um nascedouro comum, uma interdependência completa entre espaços e coisas, coisas e espaços. Não há uma diferença hierárquica tão grande entre essas histórias. A relação do lugar da obra e o da arquitetura serem indistintos me chama muito a atenção, me motiva muito. É uma relação da arte com a própria experiência com o mundo, com o agora, com o lugar, com o próprio topos e com o espaço interno também. Porque, à medida que se percorre um espaço como esse, se está lá, integrado. É uma percepção muito particular. Com a portabilidade da Arte Renascentista e o constructo perspectivo,
começa a haver um distanciamento de lugar, de construção visual, de construção arquitetônica em que as
coisas têm funções diferentes, funções já distanciadas — função simbólica, função espacial/arquitetônica/construtiva.
Elas se distanciam e ganham autonomia. Perdem uma conversa, essa é a minha sensação. Ganham outra conversa, é óbvio, mas perdem aquela fusão. Tanto nos infláveis quanto nos trabalhos das paredes, penso nessa história, nessa experiência lá em Cluny, que foi muito importante.
Talvez uma das experiências mais importantes para mim. Marcou-me. Foi em 1994. E eu só fui fazer o primeiro trabalho relacionado a essa experiência, o primeiro conjunto de branco topológico, anos depois, na defesa do Mestrado, em 2002. Mas já estava presente, sendo desenhado e imaginado. Não tinha condições de fazer antes, mas estava pensando sobre ele. A Topologia faz parte dos meus interesses e sinto que há continuidade para essa pesquisa.
Estive pela primeira vez no Museu de Cluny — Musée National du Moyen Age, em Paris, em outubro de 1994.
É um museu dedicado à Arte Medieval e conhecido por possuir o conjunto das tapeçarias da Dama e o Unicórnio. Bom, o que interessa é que lá existe uma sala, já bem na saída do percurso expositivo, onde apenas fragmentos de esculturas, provavelmente encontrados nas escavações do próprio Museu, estão dispostos de forma peculiar numa grande parede (o Museu está construído sobre as termas galo-romanas, séculos I a IV, e sobre o Hotel dos Abades de Cluny, do século XIII). Esses fragmentos são irreconhecíveis, pedaços anônimos e parte de um tempo ao qual não temos mais acesso. Lá encontrei intensamente o silêncio, o remoto e o mistério, e essa foi uma das experiências mais fortes que tive e que, embora inesperada, me levou ao trabalho com a Topologia.
Durante muito tempo, as fotos de Cluny ficaram na parede do ateliê, apenas esperando, com umas interferências discretas de pinceladas coloridas. Depois, fiz uma maquete de uma grande parede com relevos sobre a superfície que me transportava àquela atmosfera, e também dois ensaios de relevos em cartão branco.
Somente em 2002, portanto, fiz o primeiro trabalho com relevos brancos, apresentado com outras obras, pinturas e esculturas da série Tropeços em Paradoxos, na exposição de defesa do Mestrado em Linguagens Visuais.
O trabalho era um conjunto pequeno e discreto, uma pequena instalação com peças de formas orgânicas em
gesso, meio assemelhadas a sementes, que aderiam à parede e efetivavam uma sensação de alteração topológica. As superfícies convexas das peças ficavam em continuidade com a superfície da parede, tornando-a visualmente macia e maleável.
Com certeza, a Topologia é exatamente essa relação de lugar, que se tem, por exemplo, com a integração espacial da banda de Moebius, que não faz a distinção, ou melhor, rompe com a nossa idéia cartesiana de distinção de local, de dentro e fora. A banda de Moebius simplesmente joga por terra tudo isso. Não há dentro e não há fora, porque a banda faz o dentro ser o fora e o fora ser o dentro, continuamente. Então, destrói as certezas limítrofes de espaço — isto aqui é, isto não é, isto aqui é isso — fala exatamente dessa desconstrução...
Topos, que expus na Funarte, foi o terceiro trabalho que realizei nessa direção. Tratava-se de uma grande parede em fluxo derramado que vertia ao chão, um grupo de relevos cúbicos brancos. Havia ainda dois trabalhos nucleares: um com 11 formas “arpianas”, porque quis recuperar a experiência de 2002, uma vez que o trabalho daquela época quebrou, e um pequeno triplo relevo negativo, que empurrava para dentro parte da parede menor. Quis que Topos fosse “coisa” da parede sendo o próprio espaço da obra, e a obra sendo a própria parede. Uma parede que se transmuta, ondula e se mistura aos fluxos dos movimentos.
Um espaço arquitetônico que perde a sua fixidez, que se deixa invadir pelas ondulações, se expande e retrai, tornando-se, assim, móvel, macio e maleável.
Pensei demais no maravilhoso poema de João Cabral sobre o rio Capibaribe,


“Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem”.
João Cabral de Melo Neto
O cão sem plumas / II. Paisagem do Capibaribe


Na verdade, a Topologia é um ramo da Matemática que conecta o estudo do espaço e o estudo das transformações, e é todo focado no conceito de continuidade entre pontos. É importante dizer que a Topologia foi articulada por mim como pensamento de dissolução das amarras físicas habituais da realidade, dada sua possibilidade de um “amolecimento” do real. Para mim, o sentido dessa experiência passa certamente pelo simbólico, por conectarse a aspectos de uma memória longínqua, e penso que talvez, de certa maneira, universal. É como se pudessem fazer conexões com as ausências e ou transformações invisíveis que constróem marcas internas, em outra dimensão do espaço e do tempo, e que constituem a subjetividade.
Falo mais especificamente da desmaterialização e da dificuldade de se pensar um “não corpo”, na morte,
por exemplo. Esses relevos que empurram a parede parecem mais que marcas, são sopros, expansões de um
longínquo que se aproxima. A alteração topológica me fala também da questão do ser, do lugar e do espaço.
Nós empurramos e modificamos o espaço, imprimimos e somos impressos de várias maneiras por esse invisível.
A arquitetura e os nossos corpos tornam-se essencialmente fronteiras entre o fora e o dentro. Mas dentro ou fora de quê? Onde começa e onde acaba? Existiria uma fronteira entre os elementos? Sabemos que não, embora sejamos permanentemente enganados pelos sentidos.


GF: Sem dúvida, o espaço topológico dialoga com o espaço pré-renascentista, mas, ao mesmo tempo, é importante levar em conta que, na concepção pré-renascentista, o espaço se desenvolvia em círculos, círculos hierárquicos, e, por isso mesmo, não era topológico, não supunha a idéia da expansão, nem da reversão entre o dentro e o fora.


SQ: Sim, é um espaço geométrico...


GF: Geométrico, embora não matematizado como o espaço renascentista... Seu trabalho, no que diz respeito à pintura pré-renascentista, é de uma relação mais íntima e interdependente com a arquitetura. No entanto, parece-me, a sua relação é mais com a própria concepção contemporânea da Topologia... Há também o fato de a Topologia ter sido muito importante no Neoconcretismo, por exemplo, ou seja, além da referência ao pré-renascimento, há essa referência da arte realizada aqui, no Brasil.


SQ: A relação que identifico entre o meu trabalho com esse momento medieval, na catedral românica, por exemplo, é a da integração de espaço/arte / ser. Embora exista, obviamente, a hierarquia, por pressupor um conteúdo religioso que é hierárquico, a relação entre a experiência e o lugar das coisas se dá de lado a lado, é parelho. Percebo uma distinção do espaço mais euclidiano do constructo perspectivo da Renascença, e toda a história da crescente autonomia e distanciamento da pintura de uma relação com o lugar em que ela habita. A pintura passa a ser pensada a partir daí, distanciada de uma situação de relação com o real, tendo como exemplar a idéia da portabilidade, que vigora e permanece. Já a Topologia é interessante, para mim, justamente porque é o estudo dos espaços, transformações e deformações dos planos a partir de uma continuidade. Uma continuidade, no entanto, que se deforma, como se o plano pudesse ser maleável, pudesse ser vivo; como se ele tivesse essa possibilidade de movimento e reorganização. O pensamento da Topologia é, então, um pensamento libertário, muito curioso, por permitir as conexões mais estranhas e inesperadas possíveis do espaço, que é essa relação matemática. O Neoconcretismo faz essa relação fabulosa. Lygia Clark, por
exemplo, com Caminhando e algumas outras obras. Eis uma das questões que esses artistas trazem: a relação da arte com a experiência novamente, com o mundo, com o ser, com o espectador. E essa integração, ou melhor, essa aproximação acontece. Então, obviamente, esse meu trabalho se conecta com várias coisas...


GF: No contexto mais amplo da sua pesquisa sobre o espaço, você está trabalhando com os mapas, o que desloca a questão do dentro e de fora topológico para uma relação com o espaço que é mais da ordem do signo e menos do espaço propriamente dito.


SQ: Sim e não... porque a idéia dos mapas, antes de tudo, guarda relação com a questão do fluxo. Essa história, obviamente, fica mais clara nos trabalhos com a parede e nos trabalhos com os infláveis, já que nestes a percepção do tempo, a extensão um pouco do tempo, aparece de imediato.
Na pintura das Cavalariças, Stein und Fluss, 2004, (p.84–89) e nas séries seguintes, me utilizei muito do recurso
da pós-imagem para conquistar essa percepção da temporalidade, da pulsação da cor que conversava com
essa mesma idéia. A questão dos mapas é por aí, são mapas, mas são, sobretudo, fluxos. E sobre isso tem coisas
muito interessantes, como essa história da cidade ter cidades dentro dela, sobre ela, embaixo.
As cidades são sistemas compostos de diversos sistemas superpostos. Cada sistema depende e influencia
os demais. As superposições e entrelaçamentos ocorrem em diversos níveis, na superfície, abaixo e acima desta,
incluindo o espaço aéreo, a internet, mas, sobretudo, as redes de pensamento, ramificação histórica e imaterial
que se conectam ao todo.
A cidade também é superposição de grades arquitetônicas e urbanas de diferentes períodos, construídas, às
vezes, sobre as ruínas de outras. É fascinante a simultaneidade de construções de tempos históricos distintos e o modo como convivem no presente. Por outro lado, é uma superposição espaciotemporal em cima de outra, uma vez que a cidade é um organismo em permanente mutação.
Penso no caminhar de cada indivíduo na cidade e no mundo como a construção de um traçado subjetivo, de
encontros e cruzamentos superpostos no espaço e no tempo. Assim, a cidade é um desenho a ser caminhado e
cada caminho, uma escolha entre tantos. Lembro-me da conferência Multiplicidade, presente no livro Seis Propostas para o Próximo Milênio, de Italo Calvino, em que o autorcomenta o projeto da Recherche, de Proust. Calvino afirma que, para Proust, “a rede que concatena todas as coisas é feita de pontos espaciotemporais ocupados sucessivamente por todos os seres, o que comporta uma multiplicação infinita das dimensões do espaço e do tempo, de tal modo que o mundo dilata a tal ponto que se torna inapreensível”.
Para mim, então, esse trabalho toma a imagem das cidades como paradigmática das idéias de fluxo: simultaneidade e superposição. Mapas de diversas cidades do mundo são os referenciais para essa espécie de cartografia que apresenta simultaneamente a diversidade de caminhos e o próprio “caminhar” pela experiência da pintura. Nós temos uma percepção da cidade e das ruas como caminhantes delas, mas essas mesmas ruas, essas mesmas experiências, possuem outras relações de espaços.


GF: Sim, mas esse espaço das cidades, desses diferentes fluxos, se dá em uma representação diferente no mapa, é um outro tipo de codificação do espaço...


SQ: Claro, o mapa é uma tentativa de reconhecimento espacial, é quase uma representação, uma tentativa de reconhecimento... de identificação...


GF: Poderíamos dizer que o mapa não re-apresenta, mas busca apresentar...


SQ: Apresentar leituras possíveis, resumos, sobretudo resumos de fluxos. O mapa de ruas procura resumir uma situação topográfica para que ela possa ser compreendida numa outra escala; a escala que se usa, por exemplo, em um mapa pequenininho possibilita que se tenha uma percepção de orientação: norte, sul, leste, oeste e relações internas desse fluxo.
Assim como o mapa é uma carta gráfica para o nosso encontro em um determinado espaço, penso em cada
pintura como o encontro com ela mesma e com o momento mesmo de sua execução, em que o “caminhar” do
pincel é simultaneamente a criação do próprio caminho.
Cada tela é uma experiência particular, sendo suas diferenças importantes para mim. Uma vez que parto
de fragmentos de mapas, recortando-os até que esses percam sua identidade e a sua função inicial, eles deixam
de ser mapas de “se achar” e passam a ser mapas de “se perder”. Penso sempre na experiência que gosto muito de fazer quando viajo e que todo viajante faz: deixo perder-me nas ruas das cidades, fazendo as rotas apenas no impulso do desejo do olhar, mas sabendo que tenho o mapa das ruas no bolso para me resgatar quando preciso. Assim, os saltos que faço com as pinturas dos mapas são como grandes vôos na esfera terrestre, podendo começar em uma rua de Londres, em seguida recuperá-la em Aveiro, em Portugal, e de lá para a Lapa e depois Tunísia, e daí em diante.


GF: Como sabemos, a história do mapa é longa, vem desde a Antiguidade, ganhando importância particular com os descobrimentos. Ao mesmo tempo, o mapa “urbano”, que nos acompanha, com essa identificação e esse esquadrinhamento da cidade com nomes de ruas, é recente, acho que data do século XIX, mais ou menos. As próprias ruas começam a ter nomes por essa época. Esse interesse muito vivo dos artistas pelo mapa, ainda presente em vários trabalhos atuais, revela, parece-me, uma tentativa de aproximação com o real. Os mapas de Pierre Joseph, por exemplo, são mapas de lembrança, nos quais ruas somem, desaparecem, não estão em seus lugares. Em certos trabalhos, os mapas se superpõem a partir da própria experiência de deambulação dos artistas. Você se refere ao mapa como uma questão de fluxo, com a idéia de tentar relacionar esses diversos fluxos...


SQ: Para mim, a questão dos mapas é a consciência de que a cidade é uma superposição de fluxos, em permanente construção e mutação. A cidade é composta por grades que se entrelaçam, e em sua superposição, na verdade, as mesmas grades se assemelham. Tenho lido umas coisas tão bonitas e visto mapas medievais também muito bonitos. Você estava falando um pouco disso. Os mapas medievais têm uma apreensão do espaço mais afetiva, não representam as fronteiras políticas e econômicas, mas os percursos. Um rio, por exemplo, se tem uma floresta em torno, tem muitas árvores gordas e depois a montanha. Esse tipo de mapa tem uma representação afetiva e plana. Os mapas renascentistas já começam a usar a grade, a ptolomaica, que pensa a terra como um objeto, então já representa as coordenadas de alguma maneira, de forma que você pode relacionar um território, um reino tal, distâncias intermediárias entre as coisas, começando a haver essa percepção cada vez menor dos espaços, a ponto de você ter hoje mapas com grande detalhamento.


GF: Como os mapas da NASA, ou então a Google Earth...

SQ: Chega-se ao máximo, e é curioso... por um lado, a tecnologia moderna (desde as navegações) reduziu as distâncias e, portanto, o “tamanho” do mundo; por outro, as multiplicações intrínsecas às redes contemporâneas multiplicam ao fator infinito esse “tamanho” e, novamente, passa a ser uma impossibilidade a apreensão mental desse mapa...
Hoje se tem a possibilidade de um distanciamento absurdo da terra, de ver a terra do próprio espaço, dos satélites, por exemplo, e, ao mesmo tempo, a possibilidade de uma aproximação radical. Esse caminho do longe ao perto é acelerado. Enquanto os mapas medievais talvez tratassem de um território reduzido, quase como se fosse um quarteirão, mostrando os seus aspectos naturais, os acidentes geográficos, o castelo, por exemplo, e as características simbólicas importantes para aquele que mapeava, hoje, há quase uma radiografia: o mapa é uma radiografia de um corpo mutante, de um organismo que é a cidade. Querem visualizar o seu funcionamento, suas artérias.


GF: De fato, um mapa, hoje, parece uma radiografia. Talvez até seja meio isso, se falarmos dos mapas da NASA ou dos mapas acessados pela internet. A diferença do mapa em relação a uma radiografia, no entanto, é que esta guarda uma relação indicial com seu referente, enquanto o mapa não, é um tipo de malha para se ver uma cidade.


SQ: É uma malha fictícia mesmo. Uma coisa que descobri pesquisando os mapas é que não existe um mapa igual a outro. Pesquisei mapas de algumas cidades de várias procedências: mapas para turistas, mapas detalhados... Cada um tem uma organização...


GF: Por exemplo, o mapa do Rio, recentemente feito para o PAN, retirou o Museu de Arte Moderna...


SQ: Retiram tudo... Aliás, essas diversas leituras são curiosas. Quando um mapa chega a um nível de complexidade como este aqui, por exemplo, o mapa de Berlim publicado pela Falk, comparo-o a uma radiografia de complexidade incrível, por apresentar milhares de coisas: não só ruas, trajetos de ônibus, metrô, outras vias, ciclovias, como vários outros aspectos. De tão completo, tentando mostrar de maneira precisa a superposição da cidade de uma maneira extremamente detalhada, torna-se quase impossível de ser lido... Enfim, são partidos relacionados a diferentes funções, podendo ter detalhamentos incríveis.


GF: Quem sabe se a maneira dos artistas se apropriarem, de ficcionalizarem os mapas, não representa um tipo de resistência à racionalidade técnica que exige cada vez mais detalhamentos, mais instruções, ameaçando, como no conto de Borges, nos engolir inteiramente em suas malhas?


SQ: É verdade. Olhei também cartas topográficas de regiões do interior, cartas astronômicas e náuticas, tentando ver e identificar os recursos e as diferenças. É um universo imenso, muito técnico e específico. A minha questão, no entanto, passa muito pela percepção de que o fluxo, o tempo, esse continuum, não está apenas dentro de mim, mas também no organismo vivo que eu habito que é a cidade, o mundo, o planeta. A meu ver, esses mapas são uma leitura nessa ordem. Fiz várias experiências ao longo deste ano, com aproximações e distanciamentos, até me aproximar da relação que eu queria ou tentar construir essa relação. Que
imagem é essa, que superposições são essas e que vivência é essa? Na pintura, a experiência não é apenas projetiva, no sentido de pegar a imagem e projetá-la num plano; há, sobretudo, uma experiência poética de caminhar na pintura com o próprio material, construir o caminho caminhando o caminho, que acontece no próprio pintar.
Isso é importante para mim, para que esse trabalho seja também um trabalho de pintura. Faço escolhas, analiso lugares, conecto um mapa a outro, uma cidade a outra. Pego um pedaço de um mapa, um pedaço que já não se identifica, por ser um olhar fora daquele olhar mais característico das cidades. Por exemplo, posso pegar um pedaço do centro do Rio de Janeiro e conectá-lo com outra cidade. Aproximações que podem acontecer quando se mexe com esses mapas como objetos.


GF: Esses prolongamentos de um mapa dentro do outro e a relação com a cidade estão, parece-me, muito presentes no seu projeto Vôo. Como se dá a relação dos mapas com os balões?


SQ: É uma experiência completamente conectada à da pintura. É uma extensão, uma expansão mesmo, e veio da própria experiência de pintar. Quando me encontro diante dessas imagens, desses procedimentos, desse caminhar com o pincel, é um pouco também como ficar numa situação de sobrevôo. O mapa é, de certa maneira, uma planta baixa em que você vislumbra um sobrevôo e tem uma apreensão do macro, que seria impossível perceber na superfície, e essa idéia imediatamente se conecta. Comecei a imaginar a própria situação do mapa vista pela própria flutuação. E como seria uma flutuação? Um balão!
E o que seria o balão? Seria também um mapa, mas esférico.
O balão seria uma espécie de espelho esférico, uma grande esfera com essa confluência, mistura, organização
e conexão de imagens de cidades e fluxos diversos. Penso o vôo e a flutuação como o realizar de uma suspensão do espaço e do tempo, mas, sobretudo, como uma experiência transformadora, de olhar fora das coordenadas habituais, de modo que quanto mais nos afastamos, menores também nos percebemos. O olhar voa, alcança outro lugar e vivencia o mais leve, a nuvem e o vento.
O balão será uma pintura no espaço e o azul do céu, o seu ambiente. Ele observa e reflete a malha urbana, ao mesmo tempo que é um objeto voador inesperado na paisagem da cidade.


GF: Com os balões, você pensaria numa maneira de realizar uma exposição no ar...


SQ: Esse projeto tem uma amplitude pública que também me interessa. Algo que se inscreve naquela expectativa que eu tinha em 2000, quando ganhei a bolsa RioArte: fazer uma exposição de pintura no espaço urbano. Na ocasião, pensei nos outdoors. Foi a pesquisa que fiz.
E agora penso no próprio trabalho flutuando. É um trabalho que se relaciona com a cidade de uma outra maneira: um objeto que surpreende, que aparece. Ele vê a cidade de cima, e leva as pessoas a ter a experiência do vôo. A minha idéia é que o público possa fazer a experiência mesmo, não é uma relação distanciada não, é você subir, ir lá para cima no balão e voar — ver de cima, ver a própria esfera de dentro dela, ver toda essa relação com o mundo, a cidade e a natureza, vivenciar isso, seria então realizar a “grande pintura”... quer dizer, “o mundo”...


GF: Que estatuto tem o certificado que será dado a cada uma das pessoas que subirem?


SQ: O vôo seria a experiência poética de ver o que não se vê. Uma situação de suspensão mesmo, espaço/tempo, percepção do mundo, da cidade, da natureza, da grade urbana deslocada do referencial habitual. Esse deslocamento é uma experiência. O múltiplo é o certificado. Por que esse múltiplo? Porque existe uma tradição no balonismo de se dar diplomas de primeiro vôo às pessoas, e aí imaginei que esse diploma de primeiro vôo seria assinado pelo piloto e por mim. Oficial mesmo. Em geral, as pessoas que recebem
esses diplomas os emolduram e prendem na parede... igual a certificado de escola. É muito engraçado. Achei
a situação tão curiosa de trazer o trabalho para esse contexto, porque é um testemunho, é um diploma, é uma
coisa que transforma o cara em um voador, o diferencia. E que nesse certificado tivesse impresso algum desenho relacionado à cidade, algo multiplicado ali.


GF: Você imagina essa experiência realmente como a da pintura expandida. Podemos até relacionar a isso a atração, no início da fotografia, pela fotografia aérea, cuja imagem seria capaz de transformar a nossa percepção do mundo.
Em Rodchenko, por exemplo, com seus plongées e contreplongées. Nadar quase foi à falência com suas experiências com o balão. Você visa também a uma nova percepção, mas associada à idéia de uma experiência pictórica...


SQ: Sim, com certeza, associo à idéia de uma experiência pictórica. Aliás, esses trabalhos todos nascem do trabalho do ateliê. Vejo-os como uma mesma coisa, e embora saiba que não são a mesma coisa, internamente o são, como faces múltiplas de uma mesma experiência, de um mesmo sentido. Existe o trabalho do cotidiano que tem o tempo do ateliê e da pintura. São tempos completamente diferentes, mas essa história da experiência do sobrevôo, das paredes, da topologia, isso está completamente conectado aos elementos internos do trabalho de pintura.
Existe uma relação muito forte.


GF: No projeto Autorama, também está presente a questão do fluxo, introduzindo o mesmo tipo de encadeamento como no caso do mapa...


SQ: Esse projeto também é fruto direto da experiência que se pode ter sobrevoando a pintura e percebendo, muito mais do que a imagem que nos chega de longe, as suas relações internas na proximidade com a matéria, os fluxos que acontecem na pintura. Entendo o Autorama como o desenvolvimento desse fluxo contínuo, dessas superposições e desse caminhar contínuo no espaço tridimensional. Seria isso aí no espaço...

GF: Na sua pintura atual, percebe-se uma grande mudança: o vermelho está um pouco banido... apesar de ter sido extremamente forte.


SQ: Ele não está banido, veja aí... Mas a relação anterior, como nas Cavalariças, era muito específica, por ser o contraste vermelho/verde o que produz uma pós-imagem mais poderosa. Foi um contraste muito bem-vindo para conseguir produzir trabalhos que dessem conta dessas idéias.
As idéias se transformam. Essas cores foram importantes, mas isso não significa uma predileção especial nem nada... Foi fruto da necessidade do trabalho, houve depois um esgotamento, mas são cores e estão todas elas aí na atual pintura. O importante é a relação que eu consigo estabelecer com as idéias que o trabalho quer alcançar, então, agora estou com uma organização de paleta mais livre e até mais experimental, menos amarrada. Estou fazendo coisas que não teria coragem de fazer anos atrás...


GF: No projeto Vôo, em que se tece uma relação de tempo e espaço, de deslocamento do lugar habitual, de retirada, como se fosse posta um pouco em suspensão a normalidade, encontra-se, creio, a mesma idéia de escala presente no seu trabalho com os mapas, como se a própria idéia de escala do trabalho estivesse se modificando...


SQ: Sim. Isso é uma coisa em que penso muito agora. Não me interessa chegar a uma imagem idealizada, a uma forma plástica ou a um método ideal. O que foi interessante estabelecer agora, depois desse um ano e meio fazendo esses experimentos pequenos, é que a diversidade de construções que observei em relação à pesquisa dos mapas — o mapa como construção visual com diferentes funções, linguagens gráficas e concepções muito variadas — me levou, justamente, a mexer com escalas. Não quero me fixar em um tipo de escala, mas trabalhar situações e relações diferentes a cada pintura nessa série, que não terá muita proximidade visual como a série Stein und Fluss. Cada trabalho será uma experiência lidando com problemas de escala diferentes. Com as aproximações que pretendo fazer, não os vejo como pinturas isoladas, mas como uma construção de espaços entre paredes e telas e, sobretudo, diferenças que façam conexões visuais súbitas acontecerem. Já nos recortes em papel, essas conexões são da ordem da nossa percepção. Então, é importante essa diferença de escala que está acontecendo agora...


GF: No trabalho mais recente, você está integrando a sua experiência com a música, com o tamborim e o repenique, não? Nas instalações, como Vitória Suíte, 2007 (p.23–27), você introduz a música na experiência com o inflável. Antes, parece-me, essas experiências não se juntavam, a não ser como uma percepção do tempo, do seu interesse pela questão do tempo.


SQ: É... mas se juntavam sim, porque a pintura das Cavalariças era dividida em dez telas que tinham, cada uma, dois ou três elementos quadrados verdes, e na conexão destas, se você fosse pensar em compassos, havia, então, um ritmo muito específico. Pensei nisso, na época, porque música é matemática, e a Matemática é um assunto que passou a me interessar a partir da Topologia. A pequena experiência que tenho na percussão — toco tamborim no bloco Suvaco de Cristo desde 1994, e agora toco repenique — é a experiência do tempo. Música é tempo, é fluxo. É matemática. É exatamente isso a organização dos compassos, totalmente construída.


GF: Claro, mas era uma experiência interna que estava no trabalho. Só que atualmente você busca, acho, uma junção mais explícita.


SQ: É isso que está acontecendo mesmo. Vejo mais presente no trabalho, principalmente no inflável azul, Vitória Suíte.
Pensei em uma continuidade, como se fossem peças musicais que se organizassem, uma não tendo necessariamente conexão com a outra, formal ou temática. Uma suíte é exatamente isso: peças instrumentais em conjunto a serem tocadas em seqüência e sem interrupções. É como se fosse uma espécie de colagem — um recorte de mapa de um lugar, um de outro lugar e eles estão ali, não há uma seqüência lógica, mas é uma apresentação em conjunto. Acho que isso se conecta a essa história, acho que pode ser...
Quando dei a esse projeto um título, pelo menos provisório, que é Como num caminho no fora de mim, é o caminho fora — de mim. Isso tem mil implicações... O que é o meu espaço? E o meu caminho? E internamente ao meu percurso como artista, o que seria um desenvolvimento lógico coerente com uma história? E o que é o caminho fora de mim? Talvez esteja fazendo coisas hoje que estão até mais fora de mim... que me surpreendem, como um passeio no fora do que seria o meu ser e estar habituais, essa espécie de autoformatação que a gente se faz.
Existem limites que estabelecemos, outras fronteiras que são novos limites. Comecei a me interessar por caminhar fora disso, no trabalho em que eu própria participo da experiência, como no caso dos infláveis, ou agora, a observar o outro dentro do inflável, o que leva à falta de controle autoral. Experiência recente sobre a qual tenho muito a refletir. Fiquei em um impasse muito grande, mas não me furtei a fazê-lo porque só a partir dessa experiência é que eu posso ter outra percepção de mim mesma, me ver do lado de fora. Todo esse trabalho reúne isto: tentar agarrar uma idéia de fora de mim, fora... o que é?

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