Velofluxos do espaço-tempo
Fernando Cocchiarale
2008
O trabalho de Suzana Queiroga floresceu na década de 1980, em sintonia com as expectativas mais vitais da época. Assim como a maioria dos que se iniciaram nas artes nesse período, ela se tornou pintora. Sua geração, ainda que por um curto lapso de tempo, conseguiu restaurar a hegemonia desse meio ancestral, perdida após duas décadas, nas quais a experimentação de processos de produção alternativos à fatura manual e aos meios convencionais havia conquistado grande parte dos artistas.
Trata-se, portanto, de um momento excepcional da história da arte contemporânea tanto em suas implicações mais conservadoras expressas, por exemplo, na defesa hedonista e antiintelectualista da pintura quanto na inegável qualidade de muitas obras produzidas a partir de sua reabilitação. Esclarecer, portanto, como se inscrevia a produção de Suzana nesse contexto histórico, que marca o começo de sua trajetória, é vital, não só para uma compreensão renovada de seus próprios rumos poéticos, como também para apreender o sentido de seus trabalhos mais recentes: os Velofluxos.
Em 14 de julho de 1984, Queiroga participa da mostra Como vai você Geração 80? realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Evento emblemático da retomada da pintura no país, a exposição reuniu 123 artistas, sobretudo jovens, de vários lugares do Brasil. Esse fenômeno, no entanto, não se restringiu a uma manifestação local.
Os anos 1980 foram caracterizados, também para a arte internacional, pela reconquista da hegemonia da pintura após 20 anos de experimentação de meios, suportes e materiais não convencionais, que havia ampliado o campo de intervenção do artista para áreas distantes daquelas consagradas e aceitas como artísticas. A natureza (Land Art), os espaços urbanos e institucionais (intervenções e instalações), o corpo (Body Art e performances) e o conceito (arte conceitual) tornaram-se, ao longo dos anos 1960 e 1970, uma espécie de campo expandido da própria arte.
Nesse contexto (prenunciado, aliás, por Marcel Duchamp, pelo Dadá e o Surrealismo), o fazer artesanal deu lugar à concepção ou ideia e, conseqüentemente, a procedimentos de feitura afastados da manualidade, tais como a apropriação de objetos extraídos do circuito cotidiano e a utilização de meios tecnológicos como a fotografia, o Super-8 e o vídeo.
As razões teóricas para essa revolução eram sólidas e intelectualmente consistentes. Tinham em sua origem não somente o legado duchampiano, mas a própria lógica das sociedades industriais, que revogaram o fazer artesanal em nome da produção serial de bens utilitários. A nova ordem produtiva suscitou também a invenção das chamadas imagens técnicas (fotografia, cinema, etc.), feitas com um concurso mínimo da habilidade manual (Walter Benjamin).
Voltar à pintura significava, portanto, não somente uma escolha pessoal, mas devolver à arte (e ao mercado) algo que os experimentalismos pareciam, de modo indébito, ter expropriado: os suportes e meios reconhecidamente artísticos (A Pintura), o fazer artesanal e a subjetividade, em crise desde o crepúsculo dos abstracionismos.
Para além dessas circunstâncias de aparência conservadora, se confrontadas com a radicalidade das diversas propostas de desmaterialização da arte, a produção dos jovens pintores resultou em obras de inegável interesse e importância (hoje histórica), tanto no Brasil (Beatriz Milhazes, Carlito Carvalhosa, Cristina Canale, Daniel Senise, Enéas Valle, Fábio Miguez, Hilton Berredo, Jorge Duarte, Leda Catunda, Luiz Pizarro, Luiz Zerbini, Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Suzana Queiroga, entre outros) quanto no exterior (Anselm Kiefer, Francesco Clemente, Immendorf, Penk e Sandro Chia, por exemplo).
O curador e crítico italiano Achille Bonito Oliva considerava “A desmaterialização da obra e a impessoalidade executora, que caracteriza a arte dos anos 60 conforme um desenvolvimento rigorosamente duchampiano, são superados pelo restabelecimento da manualidade, no prazer da execução que reintroduz na arte a tradição da pintura.” (Vanguarda/Transvanguarda, realizada em Roma, abril-junho de 1982 e, logo em seguida, em Milão, in Los Manifiestos del Arte Posmoderno). Sua argumentação em defesa da retomada da pintura reafirma e reinstaura o dualismo entre mente (intelecto) e corpo (lugar do prazer por excelência) que algumas das vanguardas contemporâneas haviam tentado superar (Neoconcretismo, notadamente Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape; o grupo Fluxus, etc.) ao proporem a integração entre a arte e a vida.
A crítica ao intelectualismo imputado à arte minimal e aos desdobramentos da arte conceitual passava, portanto, pela ênfase na esfera corporal, sensível, não só do próprio artista, como também da pintura e sua materialidade. O fazer, fruto da ação física, resultaria na criação de um outro corpo, a pintura, cujo destino final seria o corpo do espectador, sensibilizado por meio da visão. Outros curadores da época, como a americana
Marcia Tucker (Bad Painting, exibida no New Museum of Contemporary Art de Nova York, entre 14 de janeiro e 28 de fevereiro de 1978), partilham de opiniões críticas semelhantes às de Oliva a respeito da desmaterialização da arte nas décadas de 1960 e 1970. Contra sua frieza, eles propõem uma nova subjetividade.
“O tecido da nova produção artística está sulcado por uma clave de subjetivi dade, que não é entendida como sintoma autobiográfico e privado, mas como uma correspondência da arte com motivos individuais, depurados do uso de uma linguagem consciente e controlada.” (Achille Bonito Oliva, idem). A nova pintura, por isso mesmo, jamais configurou algo semelhante a um estilo ou a um ismo (fato comum ao conjunto da produção contemporânea), já que seu teor eminentemente individual determinava uma diversidade de resultados impossível de ser classificada com o rigor especializado que caracterizou os discursos sobre a produção artística das seis primeiras décadas do século XX.
O compromisso da nova arte com as vivências pessoais de cada artista suscitava, pois, a narrativa e a figuração. Conseqüentemente, a pintura que ressurge nos anos 1980 é eminentemente icônica e expressiva e avessa aos rigores formalistas do modernismo clássico.
Mas não era bem esse o caso do trabalho de Suzana Queiroga. Não seria impróprio dizer que suas principais afinidades com os colegas de geração eram o apreço pela pintura e a valorização da subjetividade no ato criativo. De resto, ela estava por convicção e temperamento na contramão dos repertórios então dominantes.
Reviravoltas no âmbito da produção artística são comumente anunciadas e difundidas por críticos, curadores e agentes formadores de opinião a partir das características diferenciais mais evidentes da novidade. A volta à pintura não foi diferente, e os novos pintores foram valorados, tanto pela crítica quanto pelo público e pelo mercado, a partir desses diferenciais hegemônicos.
Suzana enveredou por caminhos essenciais ao seu processo, mas que estavam totalmente à margem dos repertórios dominantes, comumente figurativos e de base expressionista. Longe de corresponder ao teor icônico e expressional que especificava a nova pintura, o trabalho inicial de Queiroga aproximava-se do construtivismo. Mas é importante ressalvar que a afinidade de seu trabalho desse período com a arte construtiva não é maior que suas diferenças. Do ponto de vista formal, é visível que a configuração geométrica das pinturas iniciais da artista difere totalmente daquela em voga, por exemplo, no Concretismo e no Neoconcretismo. Enquanto para esses movimentos a forma geométrica resultava de uma construção rigorosa, matematicamente projetada ou impregnada pela experiência do artista, a geometria de Suzana provém de arranjos sensíveis, subjetivamente projetados. As curvas quase orgânicas que singularizam esses trabalhos pouco lembram as obras do construtivismo, tanto brasileiro quanto internacional. Tampouco as cores baixas, que passou a usar por volta de 1987, e a combinação de áreas matéricas e áreas chapadas numa mesma pintura, presentes desde sempre em sua obra, aproximam-se dos repertórios dessa tendência histórica.
O ponto de afinidade máxima da obra de Queiroga com a abstração geométrico construtiva é o método de produção da artista. Ao longo de mais de uma década e meia, ela criou formas a partir do recorte do chassi. Durante os anos 1990 passou também a montar algumas de suas pinturas a partir da articulação de partes previamente preparadas. Ainda assim, o sentido de sua produção até o limiar do ano 2000 não pode ser reduzido ao de um descendente contemporâneo do construtivismo.
Foi a partir dos últimos seis anos que Suzana Queiroga deu a guinada que condensa toda sua experiência poética num salto qualitativo, que a leva aos atuais Velofluxos.
Preparado desde seu ingresso no mestrado em Linguagens Visuais da Escola de Belas Artes no ano 2000, esse salto pode ser apreendido, por exemplo, em depoimento escrito pela artista para Glória Ferreira (março de 2004) a respeito do projeto In Between, concebido para as Cavalariças do Parque Lage. Nele, Suzana observa que seu objetivo era “o enfrentamento do espaço — a relação do objeto plástico com o espaço. Talvez seja um desdobramento das questões e problemas pensados por mim a partir de 2000 e 2001: a expansão da pintura. Expansão, porém, partindo de uma situação específica, que já foi abordada na série Tropeços em Paradoxos, de 2002. A idéia dos paradoxos me foi importante por subsumir o que então denominei de fixo e fluxo — termos passíveis de serem substituídos por permanência e transitoriedade. O desafio era: como trazer para a obra e para o ambiente esse paradoxo?” (Pedra e rio/fluxo, in Duarte. Paulo Sergio. Suzana Queiroga, Rio de Janeiro, Contracapa/Metropolis Produções Culturais , 2008, p. 107).
A expansão da pintura para o espaço real não é uma questão recente. Ela foi, por exemplo, investigada por todos os artistas neoconcretos até transbordar, a partir do começo dos anos 1960, do âmbito estritamente visual para o da experiência sensorial e co-participativa do público, proposta por Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica. Ainda assim, tornou-se um dos mais recorrentes desafios poéticos da produção contemporânea.
No caso da produção de Queiroga, a expansão para o espaço foi prenunciada desde o começo de sua trajetória. Com a construção de suportes com diferentes configurações formais, suas pinturas já indicavam a possibilidade de um transbordamento para além dos limites estabelecidos pelo retângulo do quadro, designado pela tradição como o locus da pintura.
A partir do momento no qual a expansão se torna a questão poética central da artista, podemos sumarizá-la nos seguintes passos: Tropeços em Paradoxos (sobretudo aqueles trabalhos feitos com encáustica sobre madeira recortada e os grandes infláveis vermelhos — 2002); o projeto In Between (no qual foram mostradas as obras Stein und Fluss, Dobra e Hermes); as pinturas Stein und Fluss, Tropeços em Paradoxos, Duplo sistema, Sistema flutuante e Sistema em curva, o inflável penetrável Vitória Suíte, e, finalmente, os Velofluxos, que representam, enfim, a introdução inequívoca da narrativa (isto é, do compromisso entre obra, vida e mundo) na obra de Suzana.
Baseados em plantas de espaços urbanos reais (Londres, Berlim, Milão, Rio de Janeiro, Brasília, etc.), sem, contudo, descrevê-los, os Velofluxos são trabalhos sobre redes de fluxos (análogos às malhas urbanas) e suas irradiações no tempo. Mas eles são, sobretudo, paisagens pintadas segundo pressupostos bastante diversos daqueles das cenas ao ar livre que se descortinavam através da janela pictórica renascentista.
Um dos mais importantes gêneros da história da pintura, a Paisagem foi concebida pela arte do Ocidente como o enquadramento, em retângulos horizontais, de cenas ao ar livre. Muitos ainda supõem que essa concepção seja uma decorrência natural e lógica da existência perceptível da linha do horizonte. Mas, em realidade, ela manifesta uma invenção histórica e, portanto, relativa.
A construção da perspectiva partia da demarcação do horizonte, para o qual fugiam as projeções de todos os objetos situados no primeiro plano do quadro. Sua vigência, ao longo de quatro séculos, terminou por atribuir, a esta linha imaginária, um papel vital para a organização espacial da pintura européia e, conseqüentemente, determinante para a expansão horizontal do quadro.
As viagens aéreas espaciais e as imagens do micro e do macrocosmo, registradas pelas novas tecnologias da imagem, contribuíram para a emergência de um novo olhar sobre a paisagem. Doravante ela pode transbordar o enquadramento fixo, posto que podia não só se mover (como aviões, naves e câmeras), como também aparecer em planta, qual um mapa, e em diversos outros enquadramentos. O contraste entre formulações tão divergentes sobre a representação da paisagem nos mostra que os meios técnicos e os repertórios que constituem a produção de imagens variam consideravelmente a cada cultura e nos diversos períodos da história.
Vistas de cima, em planta, sem a profundidade do horizonte, essas paisagens apresentam-nos fragmentos da superfície terrestre. Os Velofluxos vão além do campo estritamente ótico, característico da série de pinturas Stein und Fluss (2004), já que transbordaram da percepção para o mundo (mapas).
A mostra Velofluxo trata não só dessa outra paisagem, como também a expande para espaços fora do quadro. Cerca de 30 desenhos e pequenas pinturas, profusamente coloridos, estão expostos sobre bancadas que permitem ao público vê-los em planta, tal como se vêem mapas, e, no percurso proposto, acompanhar, ainda que de modo resumido, os precedentes imediatos dos Velofluxos e seus desdobramentos essenciais no plano pictórico.
Ao lado desses trabalhos, situam-se obras instalativas tais como o Vermelho-Velofluxo, Soft-Velofluxo e Autorama-Velofluxo. No primeiro, um inflável elíptico preenchido com hélio, leveza e transparência flutuam sobre um ponto fixo da sala, já que o blimp está preso ao chão. O segundo é uma maquete do Vôo-Velofluxo, balão de ar quente situado na parte externa do espaço expositivo. Finalmente, o Autorama-Velofluxo é composto por duas pistas, uma rosa, outra verde, sobre as quais dois carrinhos de luz correm ininterruptamente.
A configuração das pistas evoca um mapa urbano a ser visto de cima. Aqui, porém, os fluxos são concretos, graças ao deslocamento real de elementos desse trabalho no percurso predeterminado pelas pistas.
Mas talvez o mais emblemático desses trabalhos seja o Vôo-Velofluxo: um balão de ar quente, coberto de cores fluorescentes, ancorado por cordas na parte externa do CCBB de Brasília. Projetado para levar o visitante a fazer um vôo cativo de 45 metros de altura, próximo à sala da exposição, o balão-pintura de Suzana Queiroga permite-nos observar do alto, não só um panorama de 360° da capital brasileira, como também ver outras possibilidades de capturar a paisagem, como aquela, em planta, que origina o Velofluxo.