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Olhos D'água

Luiz Guilherme Vergara

2013

Introdução


A instalação Olhos d’água, de Suzana Queiroga, inaugura no MAC de Niterói uma virada tanto para a trajetória da artista quanto para o museu. Primeiramente, trata-se de um conjunto de obras que resgata difíceis memórias da artista, pela perda do pai em um acidente de avião na Baía de Guanabara, ressignificando dores de uma tragédia que marca seu nascimento. É também uma homenagem à sua mãe – que estava grávida da artista e representa o cuidado com a vida. Suzana realiza esta instalação já reconhecendo a geogra/a e a arquitetura deste lugar. A escolha do MAC se dá em princípio pelo seu posicionamento exatamente em frente ao aeroporto que seria o destino de um pouso que não aconteceu. Porém, a potência do fenômeno artístico instaurado no MAC transborda e decola do oceano marcado de memórias passadas, para gerar um território de eclosão poética.


Esta abordagem da instalação Olhos d’água reconhece primeiramente a difícil constelação biográfica da artista entre nascimento-tragédia, mas também, daí, indissociável de seu valor e virtude ética, como acontecimento plasmático e plástico de ressonâncias infinitas. Suzana encarna, nesta exposição, uma complexa visão ética de Nietzsche da conjugação existencial e espiritual na ressignificação do esquecimento-memória pela potência ativa da força plástica. O amor fati ou presente total, como virtude do “sim à vida”. Dor e ar, voo-deriva e arte, mar e ilha, vento e alma, eu-balão, balão-mundo, são alguns dos elementos simbólicos, metafóricos e filosóficos que se reinventam pela estética lírica desta odisséia dos Olhos d’água.


Nesta odisséia de Suzana, sua passagem pelos infláveis até os voos de balão remete à curiosa palavra alemã Fernweh, que significa o oposto da saudade de casa, ou um apego nômade à condição
de viajante, o amor pelo infinito e por mundos distantes. A falta do pai, o acidente do avião na sua memória uterina-aquática são parte desse desejar à deriva, navegar, caminhar ou voar, que fundamenta um abrigo, a verdadeira casa, na distância suspensa dos fluxos e movimentos da vida. Somos provocados a viajar também pelos transbordamentos entre as várias camadas da vida da artista e sua obra em processo. Como separá-los? Por quê? Revisitamos por várias vezes esta pergunta: onde começa o horizonte ampliado do oceano desta exposição? Mais ainda, quando começa essa virada conceitual, poética e existencial que revela, simultaneamente, enigmas biográficos da vida da artista e da esfera da eclosão para sua força plástica no mundo contemporâneo? Não estariam essas forças plásticas e existenciais apontando também para novos horizontes prováveis da arte contemporânea?


Fenomenologia do redondo


A forma circular do MAC, com a varanda totalmente vazada para a paisagem, acolheu o infinito oceano desta exposição. Ao apagar das luzes do salão principal, foi suspenso no coração do museu
um grande inflável azul, alimentado por um potente ventilador que ancora mecanicamente a estética sublime e lírica desta grande escultura multissensorial.


Para voar é preciso pensar redondo – para pensar redondo é preciso viver esférico, o infinito em todas as direções. Assim, Suzana traz para o MAC não apenas uma exposição de pinturas ou
esculturas, mas cadernos de viagem, diários de voos, expondo o oceano da existência, suspenso como dissoluções reversíveis entre opostos mar-céu.
Nos livros do AR, do MAR e da DOR, Suzana inaugura uma escrita encarnada nas superfícies dos papéis, também soprada como vento sobre a pele porosa dos jogos plasmáticos entre memória
e esquecimento. Cada poesia deixa pistas e devaneios inscritos ou camuflados nos desenhos feitos por uma mão certeira, conduzida pelo pensar redondo – de um Eu-Balão-mundo.


me apequeno
voo
me separo vento (Livro do AR)


Cada obra é atravessada de fluxos de incertezas universais, que subvertem as escalas micro e macro entre a série de desenhos e o grande in0ável suspenso. Olhos d’água tem a potência de encarnar afetos para os sentidos, transbordando a “redondeza do ser”2 como uma lição de solidão universal que subjaz à própria arquitetura do MAC na sua escala oceânica e celeste. O que se oferece como experiência da obra de arte: “Com efeito, não se trata de contemplar, mas de viver o ser em sua imediatez.”


Um balão a caminho do Oriente


Suzana voa com o pensar redondo. Surgem daí visões do ponto arquimediano que Hannah Arendtelabora a partir do “desejo arquimediano de um ponto fora da Terra a partir do qual o homem
pudesse analisar o mundo”.4 Em um dos pequenos desenhos do Livro do AR, Suzana se coloca no meio do nó górdio do símbolo do “Infinito” – no centro que une dois círculos do número 8 ou
também de uma ampulheta. Da altura telescópica do balão a artista se vê ou projeta para si um pequeno corpo flutuante, como passageira do tempo inflável e fluido, parte de um (in)dirigível
flutuante entre mundos – cercada pelo infinito, presente no infinito. E inscreve ali seu pensamento em forma poética:


voo como quem morre
some
dissolve (Livro do AR)


Este é um dos desenhos mais simbólicos, que sintetiza as indagações universais e existenciais da instalação Olhos d’água. Segue-se a este uma série de imagens sublimes, minúsculas, que flutuam
sobre papéis iluminados de diferentes tons de azuis, especialmente transformados em pele e mapa do mundo, como páginas impressas do AR, MAR e DOR da artista. Na atenção minuciosa a cada
um desses desenhos, observam-se estruturas de expressão e poéticas orientais que nos transportam para um universo transtemporal micro-macro, de uma tatuagem sobre a pele, ou paisagem aérea, do corpo do mundo. O balão parece estar a caminho do Oriente, absorvendo ou reencarnando intuitivamente as manifestações de uma estética lírica chinesa, integrando suas três perfeições da unidade da arte – pintura, poesia e caligrafia.5 São voos em forma de poemas visuais do grande e mínimo balão – mundo suspenso sobre o destino do universo em desenhos flutuantes no oceano de cada folha.


ignorar os significados
desse vento
é abuso d’alma (Livro do AR)


Suzana domina, em seus guaches, a escala cósmica sobre a miniatura do papel, como um artista lírico chinês, budista ou taoísta do século XIII. O que já é um jogo de virtude estética até então
desconhecido dos seus trabalhos anteriores. Em cada pintura a imagem é posicionada e dimensionada sobre o papel sempre ao centro, deixando respirar o vazio e o vento até as bordas, como poemas visuais chineses que velam a potência do invisível e do silêncio, como jogos metafóricos de dissolução de dicotomias entre céu e terra; ar e mar; vida e morte. Os desenhos se tornam caligrafias e os versos se tornam imagens desenhadas.


Ética do amor fati – Presente total
vida, eu passo (Livro da DOR)


Nesta mostra circular, Suzana se inaugura e se reinventa de diversas maneiras. Se, por um lado, somos remetidos à perda incurável pela melancolia do Fado de sua herança Portuguesa, por outro,
justamente pelo conatus, que Espinosa apresenta, em sua Ética, “como vontade, apetite ou desejo, que exerce este esforço de renovar e inaugurar sua existência”,se compartilhamos a odisseia e força plástica da vida de Suzana, que surpreende a todos ao se colocar camuflada, menina, dentro de cada imagem, como personagem desta virada ao amor fati – “Sim à vida” de Nietzsche.7 Da dor e da falta do pai, Suzana, tanto pelo inflável como pelas suas pinturas, traz o ar e o mar como fluxos de vontade de futuro. É daí que encarna o verbo e a ética do presente total, sob sua atualização enquanto “dom de doar virtudes”, do que Nietzsche, em Zaratustra, enuncia como dádiva de retornar riquezas para a vida8. Ao mesmo tempo, descobre o que Bachelard expressa na “fenomenologia da imaginação poética, (o que) permite-nos explorar o ser do homem como o ser de uma superfície, da superfície que separa a região do mesmo e a região do outro.”


quantas asas, essa dor
rota às cegas (Livro da DOR)


Museu balão do tempo – poéticas infláveis do real


Laboratórios da transparência


Ao entrar na exposição, o visitante é tomado pela experiência multissensorial de diferentes enunciações simultâneas – que fazem de cada um passageiro desta deriva e museu-balão, partes
de um único corpo redondo flutuante, de múltiplas vozes. A trajetória de Suzana para o inflável realiza um paralelo, para a pintura, com a grande aventura da modernidade, cruzando a virada do construtivismo para a desmaterialização do objeto artístico, à experiência suprasensorial da realidade ambiental. As reflexões da artista sobre estes saltos para o espaço real já constituem um sistema de forças plásticas do devir, que podemos chamar de laboratório existencial da transparência. Estas esculturas orgânicas de separação de iguais – de ar com ar – vida com vida – já ativam reflexivamente a modelagem dos horizontes experimentais da artista. A artista já então toma consciência do acontecer solidário dentro de um ambiente bolha cromático.


O futuro está entreaberto com a experiência do presente, como um anseio de várias gerações modernistas; ali, Suzana realiza também o futuro do século XX: a perspectiva de uma estética existencial ou arte total (como projeto inacabado de Mondrian, Malevitch, El Lissitzky, Oiticica, Lygia Clark e Pape, entre outros), de imersão do “espectador-participante” como organismo sujeito – ativo e estruturante – da experiência (in)divisível entre pintura-escultura e mundo.


Aos poucos, a pergunta da artista sobre “onde está a pintura, dentro ou fora do inflável?”, também se desmancha no ar – quando a obra é 0utuante, instaurando um “entrelugar” que se apropria dos fluxos de visitantes-passageiros, tomados e tomando para si a fruição do ser coletivo – praticante e constituinte dessa estrutura viva do contemporâneo. Com Olhos d’água, Suzana toma fôlego na memória biográfica para plasmar um jogo metafórico que a habilita a romper com os sistemas e ordens já fossilizados da arte-ciência e filosofia do século passado. É ainda da fenomenologia da imaginação ou do redondo que Suzana encarna nos infláveis a visão de Bachelard para a “dialética do exterior e do interior” – quando se coloca suspensa em um balão como metáfora do sentido da arte e da condição humana : “o homem é o ser entreaberto”.10


Daí também pode-se reconhecer, nos Olhos d’água, o entreaberto como existir da arte no seu sentido mais amplo de experiência pública. Daí, celebramos a total ressonância com a intuição
da forma arquitetônica do MAC, respirando e digerindo tragédia e vida na troca de ar com a paisagem.
Maria Cristina Ferraz com muita clareza apresenta as ideias de Nietzsche sobre força plástica, memória e esquecimento como atributos do espírito encarnado, indissociável do corpo,
que se libera continuamente do que é peso e passado, para viver plenamente o estado criador do presente, como invenção e atração do futuro. Não estaria Suzana praticando sua potência de
vontade e força plástica em sua plenitude, ao desmanchar no ar o que foi tragédia no mar do voo do seu pai?


ilha ao longe, perco-me
a ver mais espaços do que coisas
esse mar eu não esqueço
a alma tudo venta (Livro do MAR)


Faz sentido também lembrar a tragédia de Van Gogh, que especulava: “provavelmente, a vida é redonda.”
A instalação Olhos d’água é totalmente ambientada pela formação de uma atmosfera única de diferentes fluxos, vida-morte, ar-água, mar-nuvem, gota e oceano que compõem as reversões entre escalas humanas e cósmicas, micro e macro. Suzana traz cada um para o lugar solitário e social da união e separação arte e vida, entre iguais, onde espaço e tempo são suspensos entre opostos e os sentidos da vida e da arte incorporados como um coincidatio oppositorum. Na penumbra azulada que toma conta do espaço central do museu, o visitante transita entre enigmas poéticos, vídeos e desenhos que escondem e revelam pequenos poemas e pérolas das profundezas de um existir ín/mo entre in/nitos. Acima de todos os visitantes/passageiros está o grande inflável ou es/nge de ar, arte e oceano, sobrevoando as indagações sem respostas – sejam as dos domínios críticos da arte contemporânea, sejam as da existência: onde começa o oceano desta exposição?

Suzana transforma o museu em um grande organismo vivo, onde seu inflável azul encarna o aparelho respiratório – pulmão – pneuma (alma), colocando a todos no mesmo balão/aeronave. É deste processo indirigível da intuição que Suzana expressa de forma contundente: “esta exposição é totalmente amorosa”. Se o MAC tem sua semelhança com um templo grego, Suzana realiza, como artista contemporânea, uma travessia transcultural e transtemporal para o mito do centauro Quiron, o curador ferido, que a todos cura, mas não a si próprio. Suzana oferece a todos a transformação de sua tragédia particular pela renúncia da memória calada, para seu esquecimento, na potência plástica e plasmática de si.


“A localização do museu foi essencial para esse projeto. Lido com essas memórias simbolicamente, o despedaçamento e a dissolução do corpo no mar, o fado, a espera de quem jamais virá. É um
contato cada vez maior que faço com minha origem Portuguesa… Para mergulhar nessa proposta, precisei pesquisar e abrir recentemente, junto com minha mãe, os arquivos que ela não via desde a época do acidente, as matérias de jornal, as cartas de amor de um para o outro, os diários do meu pai, telegramas, en!m, toda uma sorte de coisas que !zeram com que eu pudesse passar a conhecê--lo, e houve sintonias incríveis, os desenhos dele em azul, diários dele com as capas no mesmo azul que eu uso, telegramas de minha mãe falando de azul. Aos poucos, conheço esse homem com uma memória construída no hoje, o que talvez revestirá, com algum tipo de membrana, esse buraco enorme que sempre senti dentro do peito”, declara a artista.


Amor e Arte são sentidos fundamentais para as transformações dos cânones modernos e contemporâneos. Parabenizamos, com imensa gratidão, a coragem ou conatus (potência e resistência para a vida) que envolve esta exposição, quando repete toda a virada existencial e espiritual da artista, mas também do século XX para o XXI, exteriorizando o acúmulo e o adensamento de vários séculos em um só tempo. O que está em jogo não é apenas uma trama ou trauma da vida privada, mas a transmutação ou superação de dicotomias entre vida-morte, corpo e alma (pneuma), como fundamentos esquecidos do sentido público do acontecimento do artístico no mundo e, daí, cura-se também o próprio museu-memória, para ser lugar de memórias futuras,
de trânsito e fluxos de forças plásticas coletivas.



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