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Arte em diferentes voltagens

Paulo Sérgio Duarte

2007

Reflexão e experiência


A beleza deste livro e sua preciosa edição de imagens podem levar o leitor a se presentear somente
com as reproduções. Sua imaginação será atraída pela solidez do percurso da obra já constatada
na pura visibilidade. Mas não nos enganemos, este trabalho é conduzido com uma investigação
reflexiva que precisa ser objeto de conhecimento daquele que queira fruir plenamente do prazer
estético. Basta, para isso, entrar em contato com as reflexões de Suzana Queiroga sobre seu próprio
trabalho, tanto nos seus textos quanto nas conversas com Glória Ferreira aqui publicadas: uma de
2004, outra de 2007. Comigo foi assim ao escrever este estudo. Depois, tive uma recente apreciação
de Suzana sobre o esboço deste texto que repercutiu em seus desdobramentos atuais. Os textos
e as conversas são testemunho de que a artista desenvolve uma reflexão permanente sobre sua
prática e suas experiências cotidianas.


Essas experiências são metabolizadas de modo sofisticado — nunca apropriadas diretamente.
Estão sempre submetidas a mediações que evitam qualquer presença prosaica do dia-a-dia. Nesse
sentido, a obra se inscreve na tradição moderna, mesmo nos projetos claramente inscritos no universo da arte contemporânea. Há inclusive distância em relação a esse mundo em que a arte é constantemente dissolvida no caldo nada sutil da cultura da imagem. Para usar uma palavra já antiga, a arte é abstrata não no sentido da tradição do século passado, mas porque que dá as costas aos aspectos mais pueris da cultura pós-moderna e dialoga sem dificuldade com o presente e sua confusão de sistemas que se cruzam e se superpõem, tanto no campo teórico quanto na vida real.
É isto: o trabalho transita sem dificuldade no universo dessas coisas do presente, sem abrir mão
de diversas conquistas.


Suzana Queiroga pode realizar instalações, esculturas, performances, mas, com freqüência, em muitas dessas manifestações, permanece indelével a marca da pintora. Não se trata de mais uma vez deslocar a noção de “campo ampliado”, introduzida por Rosalind Krauss para a escultura, e aplicá-lo na pintura. No caso da escultura, o pensamento escultórico moderno e contemporâneo atua, sobretudo, de modo centrífugo em relação ao passado da estatuária, e conquista as relações possíveis nascidas das operações cubistas e construtivas no espaço; transmite essa dilatação aos materiais. Pouco importa as ficções teóricas a que recorram os artistas, a partir da Topologia, da teoria da relatividade, de rizomas et caterva. Liberada do corpo da estátua, a escultura moderna e contemporânea sempre precisará do espaço, do lugar e de seus materiais substantivados; esses passam a se constituir num léxico interminável à disposição do artista, materiais que não são mais agentes passivos da forma como o foi o barro, a madeira, o mármore ou o bronze, cujas virtudes sempre foram coadjuvantes da forma escultórica. É esse o campo da escultura em expansão.


Qualquer manifestação pictórica contemporânea, desde aquela que usa a mais tradicional técnica
do afresco ou do óleo sobre a tela, até as mais ousadas investigações que invadem o espaço e se utilizam de materiais inéditos, está — quer queira, quer não — inscrita nesse “campo expandido”
da pintura; sob certas condições, é claro. Essas condições tomam como ponto de partida o pensamento e não o campo empírico do fazer da pintura. É no pensamento que se afirma a distinção
entre uma idéia artística mais ampla, como aquela da escultura moderna e contemporânea, ou aquela cuja reflexão só pode se materializar pelo viés pictórico. É nessa arte ainda no estado de “coisa mental” que o pintor cumpre a sua sina; mesmo quando se projeta no espaço, constrói volumes, engaja o corpo numa ação, predomina, quase sempre, um pensamento que não existiria sem a longa experiência de lidar com as cores e as telas. Ao contrário da centrífuga do pensamento escultórico, predomina um raciocínio centrípeto. O eixo pictórico exerce uma permanente força de atração e, no seu centro está a questão da cor. A dilatação do campo da pintura está sempre submetida à simultânea contração dessa força. Essa presença de pensamento, da arte como “coisa mental”, como a definiu Leonardo Da Vinci, está longe de transformar toda pintura em “pura idéia” que se anteciparia ao ato de sua materialização. A idéia do branco, do preto, do azul ou do vermelho nunca será a experiência sensível dessas cores quando percebidas no mundo. E é assim com Suzana. Pode, eventualmente, uma obra eminentemente escultórica se desenvolver, mas, na quase totalidade de suas experiências, vibra ao fundo uma energia que não poderia vir de outro lugar, senão da pintura.


Mas a obra de Suzana está ancorada no presente e é este que a empurra para fora da tradição da
tela esticada sobre o chassi. Aqui, o que se tenta compreender são apenas alguns traços desse trabalho estendido por mais de vinte anos e sua fidelidade ao pensamento da pintura como ponto de partida.


Uma relação heterodoxa


Quando o trabalho de Suzana tomou corpo, estava em voga uma nova onda na pintura que ocupou
a cena institucional e o mercado. Suzana estava no Parque Lage, no Rio de Janeiro, quando a conhecida ‘Geração 80’ trouxe para o Brasil questões que se encontravam em oposição à arte reflexiva dos anos 1960-70 na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos.
Com o advento da modernidade, nos acostumamos a pensar a arte em relativa autonomia ao curso
das coisas do mundo, especialmente em relação aos contextos políticos e sociais. Na verdade, essa
autonomia às vezes ocorre, às vezes não; muito depende do produtor: o artista. A visão de uma retomada da pintura, numa pregação da “espontaneidade”, do “ato livre”, na qual a grande arte expressionista do início do século XX foi reivindicada para dar lastro histórico às novas manobras dos anos 1980 contra as correntes críticas e “conceituais”, coincide com a ascensão do neoliberalismo dos dois lados do Atlântico: de um lado, Ronald Reagan; do outro, Margaret Thatcher. 

O elogio do mercado
como regulador de toda a vida social, em detrimento das políticas compensatórias conduzidas sob
a intervenção do Estado, é a mentalidade predominante no poder. Ali estavam definitivamente enterrados os sonhos de 1968. No cotidiano, uma nova figura aparece: no lugar dos hippies e suas utopias de vida alternativa e comunitária, surgem os yuppies (young urban professionals); o neologismo não é introduzido gratuitamente. O individualismo, o apreço pelas grifes de marcas famosas, a valorização do alpinismo social fazem parte desse contexto maior, no qual a arte assume seu papel de decorar salas e alegrar ambientes para júbilo dos marchands. Algo como se “um elefante incomodava muita gente, uma instalação incomodava muito mais”. Diga-se, de passagem, que não há nenhum mal numa obra de arte ser decorativa. Matisse é muito decorativo. O problema se encontra no intencional baixo nível de formalização da então chamada “nova pintura”, na maior parte dos casos, com o decorrente deboche da atitude intelectual e na excessiva exploração de truques explorados ad nauseum. Mais do que isso, há um claro investimento na oposição acirrada a qualquer linguagem que explorasse,
não nos seus temas, mas na sua sintaxe, um viés crítico e solicitasse uma inteligência do olhar.
Suzana, pintora, não adere à nova onda a que assiste crescer de perto. Mantendo-se à margem,
realiza um trabalho de releitura do passado construtivista de modo heterodoxo e distanciado. Esse
é o terreno sólido no qual a arte moderna no Brasil amadureceu e se emancipou a partir dos anos
1950 e 1960. Se observarmos as obras da artista dos anos 1980, encontraremos a materialização dessa pesquisa. A abstração geométrica sempre pegou pesado nas exigências construtivas, o racionalismo seguro funciona como uma estrada sem riscos pela sua regularidade controlável; fora do contexto histórico, a afirmação da razão contra o naturalismo nacionalista e a busca de “essências” locais, típicas dos anos 1940, funcionariam, para alguns artistas, mais como um refúgio do que uma fronteira a ser explorada. Muitos artistas contemporâneos mantêm essa herança sólida e segura, praticamente sem riscos nos prolongamentos desse passado. Suzana quebrou, desde cedo, na sua leitura do construtivismo, esse aparente rigor e arriscou introduzir em pinturas pretas, além do relevo e da conjunção de elementos autônomos, a irregularidade de linhas que não obedecem à gramática ortodoxa da geometria. A lição construtivista é retomada pelo caminho mais difícil, que não mimetiza os procedimentos que se afirmaram na história, não tenta reproduzir o sucesso do outro.


Essa relação complexa com a tradição construtiva se mantém e adquire corpo, ganha organicidade,
sem agregar os afetos biológicos ou psicológicos tão presentes quando apelamos à metáfora do organismo.
A exploração das oposições cromáticas fortes, a paleta idiossincrática que não se afina com
os padrões da moda, o esmero artesanal no trato da pintura, tudo contraria a vaga de afetos “espontâneos” da maioria dos pintores de sua geração.
Uma atenção particular merece a incorporação da linha curva e sinuosa na configuração da obra
de Suzana. Junto com o desenvolvimento de sua paleta, aí se encontra um elemento que cumpre
um papel que descobrimos, quando nos aproximamos de modo mais cuidadoso de seu trabalho.
Os “desenhos” dessas formas, muito evidentes, por exemplo, nas telas apresentadas na exposição
no Espaço Cultural Sergio Porto, no Rio de Janeiro, em 2000, revelam discreta estranheza. Não pretendem nenhuma violência simbólica, entretanto, junto com as escolhas cromáticas, discrepam de todas as formas já vistas ao longo das investigações abstratas. O formato grande das telas contribui para evidenciar essa nova presença. O construtivismo partiu do léxico universal das formas geométricas catalogadas pela matemática; Suzana, desde os anos 1980, parte na direção oposta. Prefere desenhos idiossincráticos que combinam linhas curvas e retas, ângulos agudos. Essas formas, por si só, se distanciam do ambiente polarizado, na pintura, entre a racionalidade construtiva e a extravagância da bad painting.
Mais tarde, esses “desenhos” ganham o espaço em experiências escultóricas que incorporam o
vazio como um componente ativo. Embora tenham sua origem na pintura, desta se descolam e ganham vida autônoma. Ao determinar um espaço próprio, evidenciam um caráter que podemos
chamar de arquitetônico; são como o traçado do perfil de edifícios imaginários, extremamente econômicos no puro delineamento de contornos. Aí se torna mais evidente o papel das linhas curvas.
De certo modo, a curva, em Suzana, mais do que quebrar a rigidez de uma tradição, amolece a forma,
mas não chega a desmanchá-la, como vimos num dos ambientes da exposição Topos, realizada na
Funarte, em 2007. É esse percurso que prepara o terreno para as investigações em instalações e
esculturas em grandes espaços.


In Between


Quando os trabalhos crescem para a plena ocupação de ambientes, movem-se entre investigações
que tomam como ponto de partida a pintura e dão continuidade às questões pictóricas pelo viés
de novas linguagens espaciais, bem como ganham autonomia em relação a esse solo no qual se
assenta parte significativa da experiência da artista. Tomemos a ocupação das Cavalariças do Parque Lage, em 2004: In Between. São três trabalhos: Stein und Fluss, Dobra e Hermes.


Quem fala é a pintora: “Há um percurso. Mentalmente, para mim, é como um tríptico”. Não por
acaso a imagem encontrada para articular os diferentes espaços da instalação é a do tríptico. Não
se trata de simples “maneira de dizer”. Já é o eixo pictórico exercendo sua atração centrípeta num
trabalho em que a questão espacial participa com força de seu desenvolvimento. E apesar da
disjunção evidente entre os três trabalhos, nos quais a artista reconhece a autonomia, eles se juntam
numa imagem tradicional da pintura: o tríptico. Suzana continua: “A questão do tríptico está
no fato de serem trabalhos que possuem independência, mas formam, em sua aproximação, um
outro trabalho. As salas bem que poderiam existir sozinhas, mas o percurso também foi pensado
como um trabalho, e se dá exatamente nesta ordem: primeiro, com a pulsação acontecendo na primeira
sala, na pintura Stein und Fluss — um tempo de movimentação de imagens, um tempo crítico,
por ser contraste puro, em que o próprio campo pictórico vira um fluxo, algo movente. Na segunda
sala, Dobra, apresento um percurso branco que já é uma transformação da própria noção de espaço
e tempo, e nos joga em uma situação em que, em vez de a imagem vir até você, para o seu olho,
ocorre justamente o contrário: precisa-se procurar alguma coisa naquele espaço aparentemente zero,
aparentemente neutro. E, à medida que ele vai sendo percorrido, é que vai se encontrando um universo
de sutilezas no branco: o encontro com uma relação toda especial, o trabalho com um silêncio
maior. (...) E, por fim, na terceira sala, apresento um trabalho em que o próprio tempo estará
construído.” (ver p.115)
A primeira sala é a do confronto com a pintura monumental Stein und Fluss (400 × 900 cm).
Confronto mesmo, porque a pintura se encontrava na parede de fundo, em frente à entrada, e a
forte oposição cromática entre a intensa superfície vermelha e os quadrados verdes fazia vibrar todo
o espaço. Para aumentar ainda mais o movimento do olhar, a distribuição dos quadrados verdes
não segue nenhuma regularidade minimalista. Tampouco têm as mesmas dimensões. Essas variações
obedecem, entretanto, a certa ordem de composição, não ficando explícita uma aleatoriedade.
As oposições de lugares na tela, e, particularmente, entre o verde e o vermelho, já haviam sido dominadas por Suzana em telas anteriores de grande porte, mas não nessa escala. Devido à horizontalidade do formato, o corpo é envolvido por essa paisagem transportada para o interior e cuja força é amplificada pela rústica arquitetura do edifício. Suzana comenta o título: “Chamei essa pintura
de Stein und Fluss, que, em alemão, é pedra e rio, termos que me pareceram interessantes, uma vez que “Fluss” é “rio” e conecta-se também à idéia de “fluxo” (como diz Heráclito, a única idéia permanente
diante da existência é a certeza de que as coisas estão em trânsito, são impermanentes, estão
em fluxo). Hoje, substituo “fluxo” pelo termo “tempo”, é o devir, a permanente “passagem de algo”.
Algo que entendemos, ou assim denominamos, como o tempo: uma espécie de estado entre um
antes e um depois, o agora, enfim, a presença. É apenas um instante que passa.” (ver p.107)
Cabe um comentário. Se existe um tempo, este é vertiginoso, pelo movimento do verde que está
aqui e acolá, um tempo bem atual, em que não podemos delimitar um antes e um depois. Um paradoxo:
o fluxo sincrônico que não sugere nenhuma diacronia ao olhar. Na obra, esse fluxo é como
um instantâneo, um “instante decisivo” de um Cartier Bresson em cores e abstrato, flagrado nas formas
dos quadrados verdes sobre o campo vermelho. O fluxo célere está em nós quando observamos
Pedra e Rio e nos obriga a sublimar um tempo que já incorporamos nos ritmos dos videoclipes e
da publicidade. Vertigem e velocidade, tão presentes no mundo de hoje, passam a ter uma dignidade
estética nessa paisagem contemporânea, na qual, se existe um rio, é uma corredeira. Nada de
uma água tranqüila que passa diante dos olhos de um pré-socrático como Heráclito. O rio de Heráclito
nunca será o mesmo um átimo depois, mas o de Suzana, com toda essa agilidade, talvez insista mais
em Parmênides: apesar de tudo passar, tudo permanece o mesmo. Ao contrário da artista, vejo em
Pedra e Rio, mais um eleata que Heráclito: prevalece a unidade sobre a transformação.
Em In Between, depois do impacto inicial, da vertigem cromática, somos chamados, na sala ao
lado, à calma, mas não tão grande quanto à de um cubo branco que nos recebe com suas obras penduradas sobre a parede; estamos em Dobra. Salvo algumas escavações na parede, muito discretas,
tudo é branco, mesmo os contra-relevos. Os relevos e contra-relevos sobre os muros são raros e pontuais, nenhuma saturação. Ao contrário, tudo respira na superfície arejada, nenhuma claustrofobia,
embora, aqui e ali apareça certo nervosismo. Os relevos curvos que se pronunciam sobre a parede
nos acalmam, mas, existem outros, os geométricos de linhas retas, cubos e paralelepípedos que invadem
o espaço tanto quanto os esféricos ou curvos, que nos provocam com suas arestas. Em contraste
com os demais, são mais agressivos, ou melhor, mais afirmativos, e se apresentam dizendo: estou
aqui, como se entrassem em um jantar sem serem convidados. A contundência de uns e a discreta
aparição de outros estabelece um jogo nada denso; todos preservam sua solidão e autonomia.
É possível que, por essa oposição entre elementos curvos que evidenciam uma clara continuidade
da superfície e os elementos cúbicos e outros quase regulares de superfícies planas, Suzana queira
essa associação, aliás legítima, com a Topologia. Não somente a Topologia é capaz de transformar
elementos curvos em retilíneos como vice-versa, transformações possíveis através de equações matemáticas.
Essa arqueologia exposta no velho prédio atua como pequenas feridas expressivas e discorda
do clima pacífico que poderia reinar ali, não houvesse as escavações expondo a superfície bruta
da parede, suas pedras e seus tijolos. Não haverá cicatrização. Não se trata de o império de um conflito entre um corpo pacificado e bem posto, e aquele aberto e em chagas. Trata-se de oposição mais serena, entre formas abstratas curvas — dentro de uma tradição inaugurada por Arp — e aquelas nas quais uma parcela do gesto e da pulsão afloram. O vazio prevalece e age nessas superfícies do cubo branco que se transformaram em receptáculo de relevos e contra-relevos da pintora. Esta equação poética obedece a procedimentos que não serão submetidos a nenhuma lógica, apesar da ficção estética estar revestida de referências científicas.


No terceiro ambiente, encontramos Hermes. É uma bela escultura com a grande forma que se
configura como um tronco da pirâmide invertido, mas esse tronco é recortado de modo a deixar
um vértice apontando para o chão. Quase chega a tocá-lo. No piso, as formas orgânicas do estanho
derramado estão dispostas de modo a permitir a atração dos imãs embutidos no vértice. Hermes
é um pêndulo em moto contínuo, mede um tempo que vacila na sua irregularidade. O grande espaço
desse terceiro ambiente das Cavalariças deixa Hermes solto. Nada perturba sua imagem apolínea.
A execução perfeita em ferro e o brilho do estanho no piso contrastam com as paredes de alvenaria
rústica aparente, apenas caiada. O tempo tão querido por Suzana está exposto nas oscilações dirigidas pelo vértice, que procura ora uma “poça” de estanho, ora outra, de modo aleatório. Ao quebrar a regularidade rítmica dos pêndulos de relógio, mantida pela força motora de seus mecanismos, nos expõe, com delicadeza, um outro tempo. Aquele que não serve para controlar agendas e compromissos.


Um tempo que renova, no mundo contemporâneo, a relação entre arte e natureza.

Entrar na pintura: a experiência dos infláveis Quando Suzana se afasta da pintura, nos infláveis, esta persiste com muita força nas suas cores monocromáticas.
De certa forma, esses trabalhos, ora esculturas, ora ambientes, proporcionam a experiência
real de estar dentro de uma pintura, que, agora só pele, toma corpo no seu vazio interior.
A pioneira Bolha, de Marcelo Nitsche, apresentada em 1968, foi uma conquista efetiva para o pensamento escultórico que ultrapassava nossas fronteiras provincianas. Nessa obra, se entrecruzavam o expressionismo abstrato e a pop de Oldenburg, Hélio Oiticica e Lygia Clark (o elemento participativo e ambiental), em uma experiência original e diferenciada. Mas a relação com a Bolha era exterior. Os infláveis de Suzana podem se apresentar como esculturas suspensas ou apoiadas sobre o piso, ou podem se oferecer como penetráveis. Algumas são monumentais e, no seu interior, além da participação do simples espectador, são realizadas performances com bailarinos profissionais ou com atores.
Esses trabalhos monocromáticos de grandes dimensões abandonam definitivamente a noção de
vazio como uma falta. Agora trata-se de lugar de gestação de uma obra cênica que se soma ao trabalho plástico numa integração entre as duas linguagens. No seu interior, nos encontramos com a vertigem da cor e com a presença do mundo. A transparência nos permite manter um pé na experiência trivial, “lá fora” tudo se passa como no dia-a-dia, aqui dentro estamos envolvidos em vermelho ou azul.
Encontramo-nos num volume espesso de cor e rarefeito de matéria — eis o paradoxo que alimenta
a experiência no interior dos infláveis de Suzana.


Fluxo na trama


As mais recentes telas de Suzana Queiroga lidam com a trama urbana tal qual encontrada nos mapas
de cidades. Os mapas abstraem o caos das metrópoles para nos orientar. Deles não fazem parte toda
a trama confusa visível e invisível que faz a cidade, desde as redes subterrâneas de água, esgoto, gás, eletricidade, cabos de televisão e redes óticas, até as redes virtuais aéreas constituídas pelas transmissões de rádio, de televisão aberta, de satélites de imagens e dados, sem falar na mais recente camada constituída pelas interações invisíveis da blogosfera. Mais do que isso: nos mapas não existem as pessoas andando de um lado para o outro, o burburinho, a confusão. Nos mapas, não existem ruas sem calçamento ou iluminação, não existe o barulho infernal, nem a sujeira, o desrespeito pelo espaço público, nem estão demarcados os territórios dominados pelos bandidos. Os mapas de cidades são formidáveis idealizações. Se a cidade não pode ser recuperada, nunca mais será pólis ou urbe, é apenas a metástase de um modo de produção e dos movimentos demográficos dele decorrentes, caldo de cultura; que tal reencontrá-la numa outra forma: pintura de mapas? E Suzana resolve pintálos a partir de diferentes lugares do mundo, cidades bem diferentes das que temos aqui.


Os mapas são tramas gráficas simplificadas; nelas, muitas vezes, ruas desaparecem, quanto mais
as pessoas e a vida. Esse achatamento do mundo dos cartógrafos antecipa, de certo modo, a vontade de verdade do pintor moderno e sua devolução ao plano, o seu estatuto de palco efetivo da pintura.
Enfrentando a verdade da superfície da tela, destrói a ilusão de profundidade. Mas não esqueçamos
que, para as cidades havia a preferência pelo “olhar artístico” à vol d’oiseau. Os mapas dessas pinturas de Suzana são plantas de uma outra cidade. De novo, sou forçado a lembrar uma herança construtiva.
Nenhuma grade geométrica marcou tanto a arte moderna quanto a de Mondrian, que pelo viés dos
títulos, foi logo associada à planta ortogonal de Manhattan. Essa vontade de ver figuras por toda a
parte toma conta da psicologia do cotidiano, quando até nuvens assumem configurações familiares.
Faz parte das múltiplas explorações do senso comum, fornecendo substrato ao olhar leigo e embrutecido do homem médio.
No caso das pinturas de Suzana, o ponto de partida é de fato o mapa da cidade. Ele sofrerá
transformações para dar lugar a campos de cor e ao fluxo de ruas e caminhos. Estamos deliberadamente afastados da memória urbana e apenas mediados pela sua representação cartográfica. Em muitas dessas telas, a paleta se diversifica e assume oposições mais tênues. Reina a calma e, aqui e ali, conforme o encontro das cores, vê-se uma doce desarmonia, uma dissonância que não grita ao olho. O mundo dessas pinturas é pacífico; nem as cores, nem as pinceladas lutam para se afirmar.
Ficamos distantes do jogo de alta voltagem entre o vermelho e o verde presente em Stein und Fluss.
A idéia do percurso de um passeio do flâneur se torna visível numa cidade que não mais pode existir.
A escala das tramas se adequa à dimensão das telas mesmo nos formatos maiores. E talvez por isso,
haja mais presença urbana na velocidade de Pedra e Rio do que nessas pinturas que trazem para
a superfície a lembrança de um mapa de cidade.
Esse fluxo da trama urbana abre para um novo capítulo dessa obra em processo, que irá de novo
nos surpreender quando se lançar em novos desafios. Correndo ao lado das correntes da moda sem
lhes dar atenção, feroz e audaciosa quando trata de romper com seus próprios hábitos, fiel à história
como bússola, a obra de Suzana Queiroga se apresenta como um corpo que transita sem dificuldade
entre tradição e inovação.


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